quinta-feira, 26 de março de 2020

O que aprendi com a epidemia e uma quarentena da então desconhecida "Gripe Suína"?

Olá pessoal, espero que todos estejam bem e se cuidando nesse momento extremamente delicado que estamos vivendo...

Situações como essas nos colocam em alerta constante, e com isso acabamos ficando muito preocupados e angustiados, e ainda mais suscetíveis a ter crises de ansiedade e de stress, por isso, resolvi compartilhar com vocês um pouco de uma experiência que vivi em 2009, a bordo de um navio de cruzeiros: uma epidemia de H1N1, que ficou conhecida como "Gripe Suína", e que nos colocou de quarentena em pleno mar do Caribe...

Eram as primeiras semanas do meu segundo contrato em cruzeiros marítimos, em uma rota pelo Caribe, onde passávamos por Aruba, Curaçao, Isla Margarita na Venezuela, San Martín e Cartagena na Colômbia, e pequenas ilhas como Santa Lucia, Barbados e Granada. Haviam 03 embarques de passageiros por semana. No embarque em Aruba, a maioria dos passageiros chegavam de um voo fretado da Espanha; em Cartagena, a maioria dos embarques eram de Colombianos; e no embarque em Isla Margarita, a maioria, Venezuelanos.

Tudo começou mais ou menos como as primeiras notícias sobre a COVID-19, se escutava que havia uma nova doença, seus sintomas e propagação ainda eram desconhecidas. Naquele caso, começou no México. Uns diziam que a causa era a carne de porco, outros que era uma gripe muito forte, mas nada era muito concreto. As primeiras medidas foram parecidas com as do início da pandemia aqui no Brasil, lavar as mãos, limpar e higienizar tudo e usar álcool em gel.

Eu trabalhava na recepção, e uma das responsabilidades desse cargo era cuidar de alguns procedimentos administrativos quando chegávamos ou saíamos de um porto, tais como: emitir lista de passageiros a bordo, relatar e/ou reportar emergências ou casos específicos de passageiros e tripulação, coisas como um desembarque não previsto, etc. Cada departamento do navio fazia seu relatório, o Engenheiro de maquinas, o Capitão, sobre a navegação, e o Médico a bordo fazia o reporte de casos de doenças ou emergências de saúde. Esses processos são realizados para que o navio receba a autorização das autoridades locais para atracar ou sair do porto. Na maioria das vezes as autoridades recebem esses relatórios antes do navio atracar, e em alguns casos, pode haver até uma fiscalização interna antes da autorização.

Bom, o primeiro caso de H1N1 detectado a bordo foi de uma pessoa da tripulação, que desembarcou para receber cuidados médicos em um hospital, não me lembro ao certo mas acho que foi em Barbados. Depois disso, corria a informação (na famosa "radio peão"), de que outros tripulantes também estavam com os mesmos sintomas e que estavam sendo isolados em suas cabines. Mas nada era formalizado e as atividades a bordo aconteciam normalmente, incluindo o embarque de passageiros no porto de Isla Margarita daquela semana.

A situação da tripulação foi se agravando rápido, muitas pessoas começaram a apresentar os sintomas da H1N1, dia após dia ouvíamos que mais 5, mais 10, 20, 30 já estavam isolados e doentes. Enquanto isso, os passageiros desfrutavam normalmente das atividades dentro do navio, sem nem desconfiarem do que estava por vir...

Até que, na chegada ao porto de Santa Lucia, o navio não recebeu a autorização para atracar, devido a quantidade excessiva de casos suspeitos a bordo. Foi ai que começamos a entender a gravidade da coisa. Para tentar controlar uma situação de pânico total que comprometeria a saúde e segurança de todos, nós da recepção fomos orientados a não informar aos passageiros sobre a real situação, ao invés disso, dizíamos que não havíamos atracado naquela ilha pois ali havia uma epidemia do novo vírus, mas que no barco todos estavam bem e a salvo.

Trabalhando dobrado na recepção, mas nos ajudando para tentarmos nos manter sãos e salvos.


Paralelo a isso, nos bastidores, os diretores e a ponte de comando faziam reuniões para estudar o cenário, nós também participávamos de algumas reuniões, onde eram dadas as orientações e esclarecidas as medidas que deveriam ser tomadas, mas tudo a curto prazo, pois todo o contexto mudava a cada minuto. 

Trabalhamos dobrado naquele período, e ainda tínhamos que estar plenos e sorridentes para não transparecer para os passageiros, e fazíamos isso porque conhecíamos as possíveis consequências que uma crise de pânico podia causar a bordo. Porém, logo eles também se deram conta que havia alguma coisa errada...

O próximo porto que iríamos atracar também não nos aceitou, e assim aconteceu com 3 portos seguidos. Não teve jeito, no terceiro dia de crise o Capitão fez um pronunciamento explicando a situação aos passageiros. Foi quando se instaurou um pouco do caos a bordo. Algumas pessoas gritavam conosco, questionavam a decisão do Capitão; apareceu médico, especialista em epidemia, e tudo mais... Mas, a maioria estava muito tranquila e paciente, entendiam que estavam todos no mesmo barco, literalmente. 

A solução encontrada foi navegar rumo a Isla Margarita, que aceitou efetuar o desembarque dos passageiros Venezuelanos, e depois seguir com um dia de navegação para Aruba, para o desembarque dos demais passageiros. 

Os pronunciamentos do Capitão também seguiram, dia após dia, como uma forma de manter a todos informados, mas sempre com muita seriedade.

Depois do desembarque dos passageiros, as autoridades do porto de Aruba determinaram que nós, tripulantes, deveríamos ser vacinados e ficar de quarentena dentro do navio, acho que por 5 ou 7 dias, não me lembro ao certo... Respeitamos as ordens, afinal, não havia nada de diferente a se fazer. Os casos de doentes confirmados e / ou de saúde debilitada foram encaminhados para hospitais locais. 

Eu lembro de sentir muito medo em alguns momentos, e em outros, exaustão. Como a comunicação com o mundo exterior era muito difícil, nós não tínhamos notícias e nem falávamos com nossos familiares. Só quando já estávamos em quarentena oficial que eu consegui ligar pra casa e falar com minha mãe. Vejo que isso, naquele momento, nos ajudou a tentar manter a calma e focar na busca das soluções. Sabíamos que era arriscado, que a companhia teria muitas perdas, tínhamos receio de perder nossos postos de trabalho, mas isso acabava sendo compartilhado com quem estava ao lado, literalmente. As suposições diminuíam e a consciência de fazer o que se deve aumentavam. Seguíamos as orientações, pois sabíamos da seriedade do momento.

Durante a semana de quarentena, sem passageiros, mantivemos uma rotina de trabalho, fazíamos aquelas tarefas que sempre ficam pra depois, sabe? Organização de arquivos, limpeza do escritório, treinamentos orientados pela área de Recursos Humanos da empresa, fazíamos reuniões de equipe, essas coisas... E no tempo livre, nos reuníamos em nossas cabines pra assistir um filme, ou até numa noite de karaokê improvisado.
Karaokê com equipamento profissional da nossa Chief Purser.

Tem alguns detalhes, alguns bons e outros um pouco ruins, que não vou contar pra vocês, mas acho que o que aprendi com essa experiência foi:

* Que tudo nessa vida tem solução, e que o bem mais precioso é a nossa saúde. Sem ela, não adianta muito estar na viagem dos seus sonhos ou no emprego ideal;
* Que tudo uma hora passa, e por isso preciso me manter forte e sadia pra recomeçar depois;
* Que a união realmente faz a força, e que precisamos cuidar-nos uns aos outros sempre.

O que quero dizer é, que não sei como será amanhã, a pandemia de Coronavírus é, de longe, muito mais perigosa que aquela que vivi no navio. Mas, acredito que cada um fazendo a sua parte, com consciência, perseverança, vamos estar ainda mais fortes e unidos quando tudo isso acabar.   

Cuidem-se bem e por hora #fiqueemcasa